Introdução
Este informativo jurídico apresenta uma análise abrangente das semelhanças e diferenças entre os regimes de supervisão financeira na Alemanha e no Brasil. O foco está nos requisitos legais bancários e de mercado de capitais, bem como na estrutura da supervisão financeira. As informações são voltadas à prática e destinam-se a prestadores de serviços financeiros, empresas financeiras e sociedades que pretendem captar ou oferecer investimentos. A análise aborda, de forma comparativa, os seguintes temas: licenciamento bancário, autoridades supervisoras, deveres de instituições financeiras, exigências de prospecto e publicidade, proteção ao investidor, medidas de fiscalização, regulação de FinTechs e estrutura de mercado.
1. Licenciamento bancário e procedimentos de autorização
Alemanha:
Quem deseja exercer atividades bancárias na Alemanha precisa de autorização da BaFin (Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht), nos termos do § 32 da KWG (Lei Bancária). Para instituições de crédito CRR (como bancos de depósito tradicionais), a licença é emitida pelo Banco Central Europeu (BCE), no âmbito do Mecanismo Único de Supervisão. Para demais instituições, a competência permanece com a BaFin. O pedido deve ser sempre submetido à BaFin. É exigido um capital inicial mínimo de € 5 milhões para bancos plenos. Os administradores devem ser confiáveis, tecnicamente capacitados e com disponibilidade de tempo. Um plano de negócios consistente, contendo modelo de atuação, estrutura organizacional e controles internos, deve ser apresentado. A idoneidade de acionistas relevantes também é verificada. A BaFin pode impor condições ou limitar o escopo da autorização. Empresas estrangeiras que operem na Alemanha por meio de filiais também precisam, via de regra, de autorização, salvo reconhecimento de licenças estrangeiras (como no „passporting“ da UE). A operação bancária não autorizada é proibida e punível criminalmente.
Brasil:
No Brasil, apenas instituições autorizadas podem exercer atividades financeiras. O CMN (Conselho Monetário Nacional) define a regulação e o Banco Central do Brasil (BCB) conduz o processo de autorização e fiscalização. Bancos estrangeiros devem constituir uma sociedade brasileira e seguir os mesmos requisitos das instituições nacionais. A legislação atual aboliu a exigência de decreto presidencial para a entrada de capital estrangeiro. Somente certos tipos de acionistas (pessoas físicas, holdings financeiras autorizadas, etc.) podem controlar bancos. A Resolução CMN nº 4.970/2021 exige capacidade financeira dos controladores, legalidade da origem dos recursos, modelo de negócios viável, e estrutura adequada de governança e TI. Os administradores e acionistas qualificados devem possuir reputação ilibada e experiência comprovada. Os requisitos de capital mínimo dependem da classificação da instituição (segmentos S1 a S5). O BCB só autoriza o funcionamento após o cumprimento de todos os requisitos.
2. Autoridades supervisoras e sistema de regulação
Alemanha:
A supervisão é centralizada na BaFin, que atua sobre bancos, empresas de investimento, seguradoras e prestadoras de serviços financeiros. A BaFin coopera com o Bundesbank, responsável por inspeções locais. Bancos significativos do Euro são supervisionados diretamente pelo BCE, enquanto os menores permanecem sob jurisdição nacional, com apoio da BaFin. A BaFin é uma autoridade integrada: supervisiona tanto solvência quanto proteção do mercado e do investidor. Outras autoridades europeias como a EBA (Autoridade Bancária Europeia) e a ESMA (Autoridade Europeia de Valores Mobiliários) também atuam na harmonização. O sistema de garantia de depósitos é público e privado. O modelo alemão é caracterizado por coordenação entre uma autoridade nacional forte, o banco central e órgãos europeus.
Brasil:
No Brasil, a supervisão é segmentada. O BCB supervisiona bancos, instituições financeiras não bancárias e FinTechs (como SCDs e SEPs). A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) regula o mercado de capitais. SUSEP e CNSP supervisionam seguros e previdência privada; PREVIC fiscaliza fundos de pensão. A CVM e o BCB cooperam, especialmente em novas áreas como tokenização. A autorregulação também é relevante: ANBIMA e BSM atuam com padrões voluntários de conduta. O modelo é setorial, com coordenação por comitês e acordos interinstitucionais.
3. Requisitos para prestadores de serviços financeiros
Alemanha:
Após a autorização, instituições devem manter índices mínimos de capital e liquidez (CRR/CRD, Basel III). A partir de 2025, novas regras (CRR III) com limites mínimos („output floor“) serão aplicadas. As exigências organizacionais incluem gestão de riscos e controles internos (MaRisk, KWG). Mudanças em administradores ou acionistas relevantes devem ser previamente aprovadas (controle de participação). Prestadores de serviços de investimento seguem a MiFID II (classificação de clientes, testes de adequação, fichas de produto). Regras de compliance (WpHG) e prevenção à lavagem de dinheiro (Lei GwG) são rigorosas. Dados financeiros devem ser reportados à BaFin e Bundesbank. Violações podem levar a multas, ordens corretivas ou restrições operacionais.
Brasil:
O BCB adota requisitos proporcionais com base no porte da instituição (segmentos S1 a S5). As regras de capital e liquidez seguem Basel III, adaptadas pelo CMN e BCB. O BCB revisará os requisitos em 2025. Regras para controle interno e gestão de riscos existem desde 1998 e foram modernizadas. Recentemente, normas inspiradas na DORA europeia foram adotadas. Administradores precisam de aprovação prévia e são avaliados quanto à reputação e experiência. Relatórios financeiros devem ser entregues trimestralmente. A CVM exige condutas específicas de prestadores de serviços e aplicação das regras de suitability (CVM Instrução 539). O sistema de prevenção à lavagem de dinheiro exige KYC, monitoramento de transações e comunicação de operações suspeitas ao COAF.
4. Deveres de prospecto e publicidade
Alemanha:
Ofertas públicas de valores mobiliários exigem prospecto aprovado pela BaFin. Isso inclui ações, debêntures e outros ativos (como empréstimos subordinados, direitos de participação), conforme a Lei de Investimentos. Existem exceções para ofertas pequenas (< € 1 milhão) ou dirigidas a investidores profissionais. Empresas listadas devem cumprir com obrigações contínuas de transparência: relatórios financeiros, divulgações ad hoc e comunicações de alterações acionárias significativas. A BaFin fiscaliza o cumprimento e pode aplicar sanções.
Brasil:
A Lei 6.385/1976 exige registro de ofertas públicas de valores mobiliários na CVM. A Resolução CVM 160/2022 detalha os critérios. Há procedimentos simplificados para investidores qualificados (ex. ofertas restritas). Emissores listados (companhias abertas) devem publicar balanços (DFP, ITR) e fatos relevantes (Res. CVM 44/2021). Informações são centralizadas no sistema Empresas.NET. Muitas ofertas devem ser feitas por meio de instituições financeiras autorizadas. A legislação também regula a publicidade durante as ofertas.
5. Proteção ao investidor
Alemanha:
Depósitos estão garantidos até € 100.000 por cliente e banco. Fundos privados adicionais oferecem proteção além do mínimo legal. Valores mobiliários também são protegidos em caso de insolvência de corretoras (via EdW). Prestadores devem aplicar regras de conduta MiFID II (informação, adequação, proibição de aconselhamento enganoso). Existem mecanismos de resolução de disputas como a ouvidoria da BaFin e órgãos setoriais. A exigência de prospecto também é uma medida de proteção.
Brasil:
O Fundo Garantidor de Créditos (FGC) assegura até R$ 250.000 por banco e cliente, limitado a R$ 1 milhão a cada 4 anos. Não há fundo geral para investimentos, mas ativos em custódia são considerados patrimônio separado. O MRP da B3 cobre perdas até R$ 120.000 em casos de fraude ou má conduta. A CVM fiscaliza práticas de mercado e combate manipulações e uso de informação privilegiada. Investidores são classificados (qualificado, profissional), e certas ofertas só são permitidas para perfis mais sofisticados. O BCB publica rankings de reclamações. Todas as instituições devem ter ouvidorias.
6. Instrumentos de supervisão e sanções
Alemanha:
A BaFin pode ordenar inspeções, solicitar documentos e impor medidas corretivas. Em casos graves, pode nomear interventores ou revogar licenças. Também pode aplicar multas significativas (até € 5 milhões ou 10% do faturamento). Infrações penais são encaminhadas ao Ministério Público. O BCE e o Mecanismo Único de Resolução também atuam em crises bancárias.
Brasil:
O BCB aplica advertências, multas, suspensões e até perda da licença, conforme a Lei 13.506/2017. As multas podem chegar a R$ 2 bilhões (BCB) e R$ 50 milhões (CVM). A CVM também aplica sanções por condutas no mercado de valores mobiliários. Termos de compromisso são usados para encerrar processos mediante obrigações. Em casos extremos, o BCB pode decretar regime especial de administração ou liquidação. Infrações penais são tratadas conforme a Lei dos Crimes Financeiros (Lei 7.492/1986).
7. Regulação de FinTechs e produtos financeiros digitais
Alemanha:
FinTechs precisam de licença da BaFin ou devem operar em parceria com instituições licenciadas. Não há „sandbox“ formal. A custódia de criptoativos exige autorização desde 2020. A partir de 2024/25, a MiCAR regulamentará criptoativos em toda a UE. A Alemanha já implementa a PSD2 (Open Banking). Crowdfunding passou a ser regulado pela norma europeia, substituindo o regime nacional do Kleinanlegerschutzgesetz.
Brasil:
Desde 2013, o Brasil criou estruturas específicas para pagamentos fora do sistema bancário tradicional (Lei 12.865). Em 2018, foram criadas as categorias SCD e SEP, com licenciamento simplificado. A CVM regula crowdfunding via Resolução CVM 88. O BCB e a CVM criaram sandboxes regulatórios. O Open Finance avança desde 2021. A Lei 14.478/2022 regulamenta criptoativos e atribui competência ao BCB e à CVM. O Real Digital está em fase piloto.
8. Estrutura de mercado e particularidades
Alemanha:
O sistema bancário é tripartite: bancos privados, cooperativas e bancos públicos regionais. O mercado de capitais é integrado à UE, com passaporte para emissores e investidores. A principal bolsa é a de Frankfurt (Xetra), com segmentos diversos (Prime, General, Scale). A participação de pessoas físicas na bolsa tem crescido, mas ainda é moderada. O modelo de financiamento via bancos („princípio do banco da casa“) é forte, mas o mercado de capitais ganha espaço. As normas são rigorosas, mas oferecem segurança jurídica.
Brasil:
O setor bancário é concentrado: poucas instituições dominam o mercado (Itaú, Bradesco, BB, Caixa, Santander). Neobancos como Nubank ampliam a concorrência. A B3 é a única bolsa do país e concentra todo o volume negociado. A participação de pessoas físicas aumentou recentemente. Produtos como FIIs, CRIs e CRAs são populares. O Novo Mercado da B3 impôs padrões de governança. Riscos como inflação, câmbio e instabilidade política são relevantes, mas empresas com boa governança atraem investidores. Programas como o Projeto FÁCIL buscam ampliar o acesso de PMEs ao mercado.
Johannes Goetz, advogado e sócio do escritório Klamert & Partner PartGmbB, com sede em Munique, atua desde 2012 como consultor nas áreas de direito bancário e do mercado de capitais, direito de supervisão bancária e direito comercial e societário. Ele representa pequenas e médias empresas de serviços financeiros, FinTechs e empresas que comercializam produtos de investimento ou captam recursos de investidores.